segunda-feira, 9 de março de 2015

Testando $\LaTeX$

Primeiro, note que a definição de $e_j^i$ é equivalente a:
 \begin{equation*}
  e_j^i: e_k \mapsto \delta_k^i E_j
 \end{equation*}
 Ou seja, $e_j^i(e_k) = E_j$ se $i=k$ e  $e_j^i(e_k) = 0$ se $i \neq k$. De fato,
 \begin{equation*}
  e_j^i(v) = e_i^j(v^k e_k) = v^k e_j^i(e_k) = v^k \delta_k^i E_j = v^i E_j
 \end{equation*}
Para provar que as transformações  $e_j^i$ formam uma base de $\mathcal{L}(V,W)$, devemos mostrar que são linearmente independentes e geram $\mathcal{L}(V,W)$. \\
Primeiramente, considere $a_i^j e_j^i = 0$ Queremos mostrar que $a_i^j=0$ quaisquer que sejam $i$ e $j$. Quando uma transformação $\phi = 0$, ocorre que
$\phi \cdot v = 0$ para qualquer $v \in V$. Desse modo, para todo $e_k$ na base de $V$:
\begin{equation*}
 a_i^j e_j^i (e_k) = 0 \ \ \ \text{ para todo $k$}
\end{equation*}

Mas, como $ e_j^i(e_k) = \delta_k^i E_j$, segue que:
\begin{equation*}
 a_i^j e_j^i (e_k) = a_i^j \delta_k^i E_j = a_k^j E_j = 0 \ \ \ \text{ para todo $k$}
\end{equation*}

Como o conjunto $\{E_j\}$ é linearmente independente, $a_k^j = 0$ para todo $j$ e todo $k$. Logo $\{e_j^i\}$ é linearmente independente. \\

Por fim, tome $\phi \in \mathcal{L}(V,W)$ de forma que $\phi (e_k) = \phi_k^j E_j$. Temos que:
\begin{equation*}
 \phi_i^j e_j^i (e_k) = \phi_i^j\delta_k^i E_j = \phi_k^j E_j = \phi(e_k) \ \ \ \text{ para todo $k$}
\end{equation*}
 Pela linearidade de $\phi$, isso implica que $\phi_i^j e_j^i (v) = \phi(v)$ para todo $v \in V$. Conclui-se que $\phi = \phi_i^j e_j^i$.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Renasce das cinzas

Aqui renasce um blog que nunca foi um blog. Serviu-me de repositório de textos que escrevia na adolescência e depois foi completamente esquecido.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O que há de belo na solidão das noites de calor?



O que há de belo na solidão das noites de calor? O que há de belo na repulsa pelo mundo, muitas vezes criada pela repulsa do mundo em relação a você?
O que há de belo nessa vida, que não se mostra com sentido algum, mas que nunca queremos largar? O que há de belo nessa esperança que se renova a cada dia medíocre e perdido? Viver, observar a felicidade questionável daqueles que a propagam... Querer agarrar o mundo sozinho, mesmo que sua circunferência seja infinitamente maior que os braços daquele que sonha; e, depois de um instante, pensar que nada vale a pena, porque não há tempo para se fazer tudo.
Nessa horas, dá vontade de voar, pular, partir, sumir. Dar um salto de liberdade, livrar-se de todas as necessidades terrenas e virar algo que talvez seja a resposta de tudo.
Mas vem a inércia e, com ela, o sono. Sono que renova a esperança patética de viver. Esperança que é mantida pela curiosidade, pela vontade de realizar sabe-se lá o quê.

De que vale, então? De que vale tudo isso?

Deve haver algo que conquiste nossas emoções, eleve nossas aspirações. Tem de haver. É preciso que haja algo para preencher o vazio. O vazio de sentidos, de motivos, de preocupações.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Existência medíocre

Gilberto trabalhava como corretor de imóveis havia trinta anos. Naquela manhã, a de seu aniversário, completava 54 anos de idade. Anos medíocres e mal-vividos de acordo com a breve meditação que fizera no tempo em que acordou até chegar à cozinha. Descendo as escadas de seu sobrado, questionou a si mesmo acerca do que fizera até ali. Depois de mais da metade de uma vida, percebeu que não havia realizado nada de histórico, que não possuía legado algum; sua existência sempre foi levada à base de decisões bem pensadas e repensadas. Nunca fizera nada por impulso. Nunca foi tomado por um ímpeto juvenil que colocasse sua condição em risco. Gostava que tudo corresse de acordo com o planejado, nada fora do roteiro vazio e sem emoção que era sua vida. Na infância tinha medo de altura, e por isso nunca brincava no escorregador. Até o dia em questão nunca havia viajado de avião. Filhos, não os teve. Demasiada seria a responsabilidade de lidar com um ser de ações próprias, que poderiam ser excêntricas demais para aquele homem que sempre colocava a meia direita antes da esquerda. O sapato direito, pela ordem natural, vinha antes do esquerdo também. O corte de cabelo era o mesmo, assim como o relógio, o qual trazia sempre no pulso esquerdo.
Naquele dia, colocou a meia esquerda antes da direita, inverteu o braço do relógio e não quis saber de pentear o cabelo para o lado. Saiu do quarto como um estranho, sentindo-se outra pessoa. Mudanças ínfimas causaram-lhe extremo estranhamento, mas Gilberto estava disposto a ter, dali em diante, uma vida de emoções. Cansou-se da mediocridade e queria começar do zero.
¬-- A gente vai chamar o meu irmão e a Dona Elisa para o aniversário hoje à noite? Aniversário, não, que eu sei que você não gosta. Mas eu só vou pegar um bolo na padaria e tava pensando em fritar umas coxinhas -- disse Augusta, mulher de Gilberto.
--Não. Não é pra chamar ninguém aqui hoje. Eu vou pensar em alguma coisa diferente. Eu te ligo na hora do almoço dizendo o que eu vou querer – respondeu o marido, com o primeiro passo rumo a uma vida nova.
Augusta, devido à postura do marido, assentiu com a cabeça, sem dizer nada. Mas achou estranho. Só ela sabia com que sofreguidão o marido suportava aquelas festinhas em dias de semana do seu aniversário. Ele não via a hora de tudo aquilo acabar e ir para a cama dormir, para não ter problemas em acordar no dia seguinte. Ganhava sempre gravatas e meias, pois ninguém sabia com o que presentear aquele homem sem gosto para nada. Ele, por sua vez, odiava todos os presentes mal escolhidos, mas colocava-os na gaveta; e, posteriormente, usava-os. Em matéria de meias e gravatas, só usava presentes.
Depois de tomar o último gole de café, Gilberto se despediu da mulher com um ar concentrado, como se tivesse a questão mais angustiante do mundo a resolver. Certo de que algo diferente viria à sua mente, meteu-se em seu Uno 97 e foi para o trabalho. Augusta ficou a pensar e a tentar adivinhar o que deu em seu marido naquela manhã. De certa forma, achou interessante, talvez fossem jantar fora. Quanto tempo que não iam a um restaurante! Talvez o cinema. Não sabia, mas estava curiosa. Se o marido era um sujeito nada adepto a emoções, menos ainda era sua mulher. Na verdade, é justo e necessário, dizer aqui e em todo lugar que Augusta recrudesceu o espírito não-aventureiro de seu marido. No começo do casamento, ele até a convidava para sair. Mas ela sempre recusava. De tanto recusar, ele parou de convidar. Até que o próprio marido já não queria mais saber de sair de casa. Assistiam à televisão aos finais de semana, e a isso se resumia suas atividades de lazer. Os dois ficavam de mãos dadas a ver a National Geographic e a excitante vida dos pingüins do Pólo Norte.
Augusta lavou a louça do café e pôs-se a arrumar a casa; menos pela sujeira e mais pela inquietação e curiosidade. O que aquele velho cordato havia de ter naquela cabeça alienada. Por mais que Augusta soubesse que de seu marido não pudesse esperar muito, sentia uma alegria especial em poder, finalmente, usar um brinco ou algum acessório esquecido em seu guarda-roupa. Vivia vestida com trapos, o marido não fazia distinção entre um vestido de luxo e uma calça de moleton com uma camiseta velha de propaganda de vereador não eleito. Sabia que, ao saírem, o marido não repararia nela, nem ninguém. Mas queria se arrumar para si mesma. Enquanto varria o chão, pensava numa possível combinação de roupa. Qual bolsa que ficaria melhor com qual vestido, qual bracelete que ficava com qual colar. Enfim, tudo aquilo em que Gilberto nunca ia reparar.
Subiu as escadas e foi ao seu quarto, começou a experimentar seus vestidos mofados para ver se ainda lhe serviam. Fazia tempo que Augusta não passava um tempo se olhando no espelho. As suas roupas largas e pouco femininas escondiam suas formas que, aos 47 anos, não estavam de todo ruim. Jovem, tinha um corpo bem brasileiro. Os seios eram medianos, porém se sustentavam bem; eram rijos e fariam a felicidade de um marido que não fosse tão antiquado como Gilberto. Ao se olhar no espelho esquecido, admirava sua silhueta e se alegrava de ver que sua bunda, apesar de ter adquirido alguns furos, não tinha perdido sua forma original e, naquele vestido, era até atraente. Percebeu que não era feia; ou melhor, não tinha ficado feia. O que aconteceu é que ela tinha se esquecido de si mesma. Por falta de incentivo do marido, entregava-se à sua função de dona do lar, mas não desempenhava o papel de amante. Quem sabe agora, com aquele homem de cabeça mudada, não voltaria a sentir o que sentia há alguns anos. Tinha se esquecido de como era fazer amor com o marido. Na verdade, olvidara daquele prazer distante que fazia parte de sua vida. Entre uma troca de vestido e outra, recordava-se de como seu marido a despia: contido, claro, mas admirando cada parte de seu corpo. Augusta foi levada nesses pensamentos e sentiu desejos que pensara que nunca mais poderia sentir. Talvez o marido também tivesse acordado com tal necessidade. Em vez de jantar fora, começou a considerar a idéia de seu marido levá-la ao motel. Depois disso, além de procurar o melhor vestido, começou a escolher qual seria a melhor lingerie. Percebeu, então, que só tinha calcinhas beges, da cor da pele: nada sensuais. Até que, no fundo da gaveta, encontrou uma calcinha vermelha, que não usava há, pelo menos, uns quinze anos. Tomada de um ímpeto, foi experimentar a calcinha. Foi então que percebeu que, em algum lugar havia pelos demais. Não costumava se olhar muito, trocava de roupa, na maioria das vezes, sem se olhar direito. Foi ao banheiro se depilar. Queria deixar tudo pronto para o marido. Queria proporcionar o melhor para elevar a emoção de seu marido. Não sabia se Gilberto perdera o desejo, escusava dar qualquer motivo que piorasse ainda mais a situação. A depilação trouxe de volta sua intimidade, o cuidado com o próprio corpo. Depois de cometer um crime ambiental e derrubar toda aquela floresta amazônica, sentiu-se mais atraente e pronta para o marido. Terminou de escolher a sua roupa, assim como seus acessórios, e ficou a esperar pela ligação do marido.
Era meio-dia e vinte e sete quando o telefone tocou na casa de Augusta. Ela atendeu, e uma voz cortada e grave disse:
-- Coloca sua melhor roupa, porque hoje eu vou te enterrar. E desligou.
Ela, de imediato, reconheceu a voz do marido. Já nem estranhou mais aquele vocabulário que não condizia com a personalidade do marido, pois seus pensamentos eróticos já tinham ido muito mais além. “Coloca sua melhor roupa, porque hoje eu vou te enterrar.” A cova já estava devidamente preparada, só faltava o coveiro com uma pá rija para fazer o serviço. Aquela voz de macho ao telefone dava-lhe arrepios só de lembrar. Num efeito sinestésico, a cada vez que recordava da ligação e do timbre de voz de seu marido, sentia um odor de masculinidade, de virilidade. Odor pertencente ao homem que viria fazer sua felicidade e revisitar seus tempos de prazer. Como num romance naturalista, Augusta queria rebaixar-se ao seu instinto de fêmea para ser devidamente copulada pelo seu macho. E isso lhe deixava molhada. Com aquele telefonema no ouvido, voltando à sua memória a cada segundo, levava sua mão à sua genitália e sentia de novo o prazer que aquele órgão podia lhe dar. Vesga e tendo quase um ataque epilético, esfregava cada vez mais forte seus dedos contra seu clitóris, levando-se a um gozo que a dona de casa não sabia que podia proporcionar a si mesma. Porém havia necessidade de preencher o espaço, com um pedaço de carne grossa e masculina. E então se lembrava da ligação.
Tomou um banho, se lavou. Como lhe foi ordenado, colocou a melhor roupa para seu marido. A expressão “eu vou te enterrar” trazia à sua mente uma brutalidade sensual. Queria apresentar-se subalterna para o marido, para que dela fosse feito o que melhor entendesse. Queria ficar de joelhos em frente ao marido, para fazer algo melhor do que rezar. E ela ficava cada vez mais aflita e ansiosa. E relógio marcava 17h e 37 min. Seu marido chegava, britanicamente, às seis horas da tarde. Caía uma chuva forte e constante, e então se afligia mais ainda. Talvez o tempo retivesse mais seu marido e alongasse mais aquela espera infinita por seus momentos de prazer. O telefone tocou novamente:
-- Vou chegar lá pras onze horas. Mas ainda tá de pé o que eu falei. E desligou.
E ela ficou ainda mais aflita e angustiada. Pelo menos ainda estava de pé. E o mais importante é que estivesse de pé. E qualquer coisa remetia a sexo. E aquilo ia ficando cada vez mais insuportável. Naquele dia conheceu o significado da palavra angústia. Para uma mulher tão normal, ser submetida a um dia inteiro de tensão e expectativa só podia ser para levá-la à sandice. Ela olhava para o relógio. E ouvia o tic-tac. Cada segundo a deixava mais perto daqueles momentos de prazer que tanto imaginara naquela tarde, que estavam prestar a acontecer. Às 10h e 30 min., estava quase subindo pelas paredes. Estava quase a sair pela rua a atentar o primeiro indivíduo do sexo masculino que visse. Sexo. Que dureza, hein Augusta! Foi até o quarto, novamente, para ver se tudo estava direito. E estava. Só faltava o macho com seu órgão copulador. Não queria mais sair. Não queria saber de motel. Atirar-se-ia em cima de seu homem tão logo o visse, para tratar do assunto tão importante ali mesmo. A cada momento a espera se tornava mais difícil. A chuva caía cada vez mais forte, e Augusta se entregava àquela loucura. A dona de casa, um dia antes, nunca imaginaria que poderia se colocar naquela situação. Não era mais possível ficar dentro de casa, ela sentia uma impotência em mudar seu destino, mas de qualquer maneira queria sair daquele ambiente fechado onde era consumida por seu desejo.
Abriu a porta e viu a chuva que já não caía mais do céu, já despencava. Aqueles trajes de festa que havia posto estavam ensopados e, naquela mulher, não sobrara nenhum sopro de razão. Sentia-se cada vez mais molhada, tanto pela chuva como nas suas partes íntimas, naquela espera pelo marido. Já era quase meia-noite e Augusta estava naquela rua deserta debaixo de um temporal esperando por um Uno 97. Então percebeu alguma luz aproximando-se, e então viu que era o carro de Gilberto que estava na esquina, vindo na direção de sua casa. Seu desejo ficou mais forte ainda, com a certeza da chegada do homem que estava prestes a saciar toda a fúria de mulher possuía pelos instintos naturais. Gilberto parou o carro em frente à sua casa, abriu a porta e desceu. Com sua roupa e aspecto de sempre, exceto pelo relógio que estava no outro pulso, ficou também parado debaixo da chuva que caía com a mesma intensidade. Ficou a olhar para sua mulher, que tinha se enfeitado toda, mas havia sido destruída por aquele temporal e pelo acesso de loucura. Os dois ficaram a se olhar por quase trinta segundos sem nenhum movimento por parte de ambas as partes. Não foi preciso muito para que Augusta entendesse o gesto que Gilberto fez com a cabeça, ordenando para que entrasse no carro. Augusta obedeceu e foi em direção ao automóvel. Entrou e sentou no banco do passageiro. Gilberto, sem colocar o cinto de segurança, ligou o carro e disparou a uma velocidade descomunal para seus hábitos. Não olhara novamente para a mulher, mas parecia ciente do que estava executando. A mulher, intimidada, não fez nenhuma pergunta e deixou-se levar pela figura despótica do marido. Este, por sua vez, prosseguia a uma velocidade extrema, dando tudo que seu humilde carro podia oferecer. Augusta já não se importava com nada. Não se importava se podia morrer dentro daquele carro em alta velocidade, guiado por um marido com o juízo prejudicado, com um agravante: a chuva que não dera trégua. Para a simples dona de casa, aquilo era uma aventura nova e cheia de surpresas. Sua vida estava muito abaixo desse momento de emoção. Só queria saber de aproveitar aquele momento de excentricidade com o marido. Não havia diferença entre viver e morrer. Para ela, aquilo era um verdadeiro sonho, e o fato de não se morrer nos sonhos deixava a dona de casa com a consciência tranqüila. Poderia ficar séculos olhando para aquele marido com uma fronte fechada de quem garante que está tudo sob controle. Era-lhe prazeroso mirar aquele homem colocando suas vidas em risco, prestes a revelar qual era a fantasia que se passava em sua mente naquele momento. Augusta imaginava o quanto o marido não deveria ter pensado sobre os instantes que passavam, naquela tarde. Se ela ficou a se roer e a se esfregar o dia inteiro com aquela ligação, o que não teria pensado o marido naquele dia? Algo realmente inesperado. Mas o semblante de Augusto não parecia ser o semblante de alguém que raciocina, de alguém que constrói uma linha de pensamento extensa. O que parecia era que aquele homem tinha um objetivo, uma meta a ser cumprida, e trabalha mecanicamente para conseguir por em prática seu plano, se é que havia um plano. Embora Augusta pensasse que o marido a levava a um lugar escolhido, a um lugar sobre o qual devia ter pensado durante toda aquela tarde, não era possível saber se Gilberto tinha um destino certo, ou se estava vagando por aquelas ruas desconhecidas, que já estavam bem longe de sua casa por sinal. Talvez nem mesmo soubesse onde estavam, talvez já tivesse se perdido há muito tempo. Mas também não se podia duvidar de que o seu verdadeiro propósito era se perder com a mulher. Um homem tão normal e previsível tinha mudado radicalmente. Mas ninguém é capaz de mudar sua própria característica de um dia para o outro. Gilberto não era uma pessoa criativa e, como tal, não poderia ter preparado um plano incrível para viver junto com a mulher. Talvez o seu plano era de sair sem plano. Seu plano poderia ser uma negação de todos os planos e roteiros do mundo, e não se pode dizer que isso seja algo de todo covarde. Era uma revolução e tanto para um homem tão comum e medroso. Errar por ruas desconhecidas num dia de chuva, quando se podia estar em casa já, dormindo no conforto de uma cama digna de um trabalhar, era, já neste momento e sem necessidade de recorrer à memória, a maior realização de sua vida, em termos de coragem. Aquele homem que corria num carro sem destino, que só pararia quanto a gasolina acabasse estava completamente mudado. Já tinham andado muito, porém, por seus sentidos não estarem trabalhando com todo seu potencial, Augusta não podia saber quão longe aqueles dois loucos já tinham ido. Parecia que tinham andado muito. O que se pode dizer é que era o suficiente para estarem perdidos, sem nenhuma dica para voltar para casa. Mas nenhum dos dois queria saber de casa naquele momento. Sua casa era a representação de segurança e conforto. Mas o casal fugia dessa rotina, já havia negado todo o seu passado e viviam o desprendimento daquela vida medíocre.
A aventura estava emocionante e tudo mais, porém Augusta começou a duvidar da lucidez do marido. Aqueles momentos de juventude e de fazer tudo vem à cabeça tinham sido excitantes, mas a dona de casa começava a recuperar sua razão e a achar que aquela brincadeira estava estranha de mais. Seu entusiasmo e sua euforia passaram, e começou a achar aquilo assustador. Naquele momento, já podia distinguir com muita facilidade a diferença entre viver e morrer. E estava com medo daquele lugar desconhecido, estava com medo de ficarem sem gasolina e sem poder pedir socorro. Mas havia algo de intransponível entre ela e o marido. Queria falar com ele, queria questioná-lo, dizer que a aventura tinha sido emocionante, mas era hora de voltar à realidade, e ser normal nem é tão ruim. Lembrou inclusive que havia deixado a louça da janta na pia sem lavar, e vinha-lhe um extremo remorso. Pensou que não deveria ter-se entregado tanto a si mesma e à sua luxúria. Deixou as obrigações de casa sem serem feitas. Além disso, o marido tinha de trabalhar no dia seguinte, afinal, dependiam muito daquele salário. Era aquele pequeníssimo soldo que sustentava sua reles existência. Naquele momento via que, na vida, ser medíocre e não ser aventureira tinha seu lado bom, e sentiu-se feliz por ter uma vida normal e segura. Porém não parecia que a razão do marido voltara assim como a sua fizera. Gilberto ainda dirigia concentrado e parecendo ter um objetivo. Augusta percebeu a seriedade do marido e não chegou a questioná-lo acerca de nada. Agora, o que fazia a mulher não indagar o marido a respeito de nada não era seu estado e exaltação e prazer, mas sim a confiança que possuía naquele marido conhecido, de atitudes sempre contidas e coerentes. Começou a tentar se convencer disso, e então veio um pouco de tranqüilidade. Mas todas essas mudanças se passavam, única e exclusivamente, na cabeça de Augusta. Pois, na realidade, o marido continuava a dirigir em alta velocidade naquela estrada (já era uma estranha, e não mais ruas) desconhecida. Mas tinha medo de fazer qualquer tipo de pergunta ao seu cônjuge. Foi então que uma idéia mais pacificadora ainda veio acalmar sua mente. Talvez ele a estivesse levando para viajar. Começou a considerar a possibilidade de o marido ter conseguido um dia de folga no trabalho e estar levando a mulher para viajar. O fato de estar dirigindo em alta velocidade poderia ser explicado: o marido queria chegar cedo até o destino. Deveria ser algum lugar longe, e então o marido queria chegar até a aurora. O nascer-do-sol do lugar em questão devia ser maravilhoso, a ponto de o marido fazer de tudo para proporcionar à mulher tamanha felicidade. Os telefonemas não deviam ter passado de uma grande brincadeira do marido, que queria fazer um agrado à esposa. Todos aqueles momentos de prazer e tensão foram criados na sua mente, só lá dentro da sua mente. Augusta, então, admirou-se da capacidade humana em criar e fantasiar. Claro, fantasiar! Aqueles momentos não passaram de fantasia de uma mulher de meia-idade. Ela se sentiu até envergonhada, e ficaria mais ainda se o marido soubesse o que fez e pensou naquele tarde. Augusta viu que fez bem em não ter falado com o marido naqueles instantes, pois poderia ter falado algo completamente sem sentido, que o marido não entenderia; e ela acabaria se colocando numa situação embaraçosa. A idéia, ou melhor, certeza de que estavam viajando acalmou aquela mulher que, há poucos instantes, estava quase a ter uma crise de loucura. Apenas uma coisa não tinha ficado totalmente esclarecida: por que o marido não pediu para que fizesse as malas? Estranho, se estavam viajando, tinham de levar alguma coisa. Mesmo que não fosse muito, mas algo suficiente para poderem passar um dia. Uma troca de roupa, chinelo, protetor solar. Enfim, coisas simples, mas que não podiam ser esquecidas. Mas, veja bem, se o marido decidiu de uma hora pra outra que iriam viajar, talvez tenha decidido também comprar tudo na cidade para onde estavam indo. Muitas cidades no interior tinham um custo de vida menor que o da cidade. Por isso, o marido decidira comprar tudo lá mesmo, para evitar ficar levando bagagem. Augusta começou a sentir frio, claro, estava molhada, tinha estado debaixo daquela chuva terrível. Porém estava também com sono. E após ter feito de tudo para persuadir a si mesmo do destino que seu marido escolhera, queria descansar. Mas a verdade era que Augusta não sabia para onde estavam indo. Mas ela mesma não sabia disso. Ela fez de tudo, e conseguiu, para enganar a si mesma e tentar trazer um pouco de tranqüilidade àquela loucura na qual estava metida. Há de se parabenizar a dona de casa pela façanha de ter enganado a própria mente. Ela utilizou uma linha de raciocínio lógico relativamente complexa para aquele momento de desespero e conseguiu trazer a paz para si mesma. Num momento de desespero, em que não há o que fazer, senão esperar por uma resolução, enganar a si mesmo não é uma opção ruim. Augusta se viu naquela situação sem saída e nada mais podia trazer. É como, numa doença terminal, dizer que Deus tem um propósito para tudo aquilo e o sofrimento faz sentido. Sofrer não faz sentido. Faz parte da vida, e isso é irrefutável, mas sentido não faz, não. Porém dizer que Deus tem um propósito é, muitas vezes, tudo o que resta a um doente sem esperanças; e não se pode, de maneira alguma, julgá-lo por tentar enganar a si mesmo. E foi exatamente o que aconteceu com Augusta naquele noite chuvoso de uma dia que parecia normal, e que ela queria fazer tentar parecer normal novamente, na medida no possível.
Ela olhou de esguelha para o marido, e viu que sua aparência era a mesma. Não havia mudado em nada; e parece que também não havia mudado em nada sua resolução acerca do que estava fazendo. Mas como o trabalho de auto-persuasão estava feito, Augusta dormiu com relativa tranqüilidade no banco do passageiro daquele Uno, apesar do frio e da incerteza. Agora tarefa impossível era desvendar o que se passava na cabeça de Gilberto. Mais frio que um piloto finlandês de Fórmula 1, seu rosto nada dizia a respeito do que se passava em seus pensamentos. Apesar de Augusta ter encontrado alguma explicação para aquela carreira sem sentido algum, não se podia dizer que Gilberto tinha algum objetivo em mente. Talvez realmente estivesse só vagando por aquelas estradas. Seria prolixo por parte do narrador desse conto voltar a essa questão, com o objetivo com alongar ainda mais essa análise sem fundamento algum. O semblante de Gilberto estava fechado. E pronto. Não se pode ficar a fazer suposições vagas e respeitos de seus pensamentos e anseios, pois isso seria alongar essa narrativa, de modo a preenchê-la com palpites daquele que conta o acontecimento. Como o objetivo principal deste relato é apresentar o que realmente aconteceu naquela noite em questão, o melhor que se pode fazer a se ater somente àquilo que ocorreu. Não se sabia o que estava na cabeça de Gilberto. Mas o seu olhar (e nessa observação não consta nada de palpite, apenas a exposição de um fato que não poderia ficar de fora do relato) também dava margens a uma interpretação diferente. Poderia ser, também, o olhar daquele que possui algo fixo em mente, algo que não se pode deter por nada nesse mundo. Quando um homem tem um desejo fixo, pode-se dizer que o mesmo é apto a fazer de tudo para concretizar sua idéia, até mesmo entregar sua vida por um ideal. E não era se podia duvidar da capacidade de Gilberto, naquele momento, de acabar com sua vida dentro daquele carro. No começo do nosso relato, logo pela manhã, talvez Gilberto tenha acordado, sim, com o intuito de realizar algo diferente, de sair da rotina, de fazer uma surpresa de marido aplicado para a mulher. Mas quando tomou aquela resolução, ainda não tinha em mente o que, exatamente, seria feito no dia em que completava mais um aniversário. Mas ele quis deixar um ar de suspense, quis deixar a mulher curiosa. Queria mesmo, sem nenhuma brincadeira de mal gosto, fazer algo diferente para o casal. Foi, então, ao trabalho como de costume, olhou para o relógio no pulso direito e começou a se perguntar sobre o que poderia ser feito. Naquele dia o pobre homem nem deve ter trabalhado direito. Não é conveniente culpar um pobre inocente, parvo, de criatividade limitada por ter tido um bloqueio. Realmente, não sabia o que fazer. Podia ter concordo em chamar o cunhado e tudo teria sido feito como todos os anos. Provavelmente, ganharia uma meia ou uma gravata e poderia, no dia seguinte, usar algum desses no trabalho. Mas o problema é que Gilberto saíra de casa e deixara a mulher com uma tremenda expectativa, e não podia decepcionar a mulher. Se a chamasse para sair, não seria algo a altura da expectativa que criara naquela manhã. A mulher, e isso era o que se passava na cabeça de Gilberto, queria alguma coisa diferente e não se contentaria com algo comum. O leitor vai concordar que não se contentaria mesmo, haja vista toda a esfregação que aconteceu naquele dia. Então o pobre homem decidiu ligar na hora do almoço, como prometido, para dar algum parecer. E piorou ainda mais a situação. O que fez foi colocar-se num desafio maior ainda na sua frente. Ligou para a mulher, sem nada na cabeça e improvisou uma frase digna de roteiro de um filme pornô dos mais safados e disse: “Coloca sua melhor roupa, porque hoje eu vou te enterrar!” Que diabos era aquilo, homem? Agora a mulher ficaria com uma expectativa maior ainda, seria mais que impossível pensar em algo tão emocionante. Não poderia ter simplesmente dito: “Coloca sua melhor roupa, porque hoje a gente vai jantar fora”? Teria funcionado. A mulher teria ficado feliz. Sim, teria ficado feliz! Mas não, quis dar uma de machão e fodeu com tudo. O pior é que a tarde foi passando, e tempo foi fechando e nada de empolgante vinha à sua mente. No final da tarde, chovia forte, e isso era uma boa desculpa para adiar o confronto com a mulher. Foi então que decidiu fazer outra ligação, e dar mais asas à ilusão da mulher: “Vou chegar lá pras onze horas. Mas ainda tá de pé o que eu falei”. Está de pé o quê? Andou pelo centro da cidade, debaixo de chuva, entrou num SexShop, mas sentiu-se ridicularizado. Um homem daquela seriedade dentro de tal estabelecimento. Não teria nem capacidade de comprar qualquer coisa ali dentro, o pobre homem ruborizado. Então saiu de lá e foi errar pela cidade. Num determinado momento, já não encontrava nada aberto mais. Então decidiu que na hora “inventaria alguma coisa”. A mulher era tão bobinha e inocente, que qualquer coisa que fizesse poderia levar felicidade àquela coitada dona de casa. Gilberto entrou no carro, já todo molhado, e foi para casa. Quando chegou em casa, viu a mulher do lado de fora, tomando chuva! Com aquele vestido que não usava há muito tempo. Gilberto saiu do carro e ficou a olhar para a mulher. Naquele ínterim, viu como sua esposa ainda era bonita, dentro daquele vestido velho e molhado. E estava do lado de fora da casa, debaixo da chuva, tinha se preparado toda para aqueles momentos de emoção. Mas Gilberto nada de concreto tinha em mente. Foi quando, mecanicamente, com um gesto com a cabeça, mandou a mulher entrar no carro. Não tinha nem coragem de olhar para Augusta. Ficou com medo de duas coisas: da sua euforia e de sua beleza. O maior dos medos era o da beleza; não sabia que a mulher poderia ficar tão atraente de novo. Mas poderia sentir, pela respiração de Augusta, que a mulher nutria uma incrível esperança de acontecer algo extraordinário. O máximo que pôde fazer foi acelerar o carro e sair por aquelas ruas. Depois não mais trocou seu semblante. Os músculos de sua face estavam todos tesos e estáticos. Aquele homem fez-se impenetrável. Nada se podia saber a respeito do que se passava em seus pensamentos a partir de então. Era impossível que não pensasse em nada. Mas, ao mesmo tempo, era humanamente impossível desvendar o que trazia naquele cenho fechado.
E encontram-se os dois, marido e mulher, nessa situação. Leitor, sua opinião é muito importante para mim. Se quiser que Gilberto volte para casa, guarde o carro na garagem e vá dormir com sua mulher, ligue para 0800-6969171. Se quiser que ele realmente enterre a mulher, seja lá o que isso signifique, ligue para 0800-6969024. Ligue quantas vezes você quiser e lembre-se: sua opinião é muito importante para mim. Você decide.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Fuga da opressão: em busca do desconhecido

Um homem deixa seu cubículo e sai a errar pelas ruas. Olha para todos os lados, vê uma multidão de estranhos. Se sente deslocado, como se não pertencesse a lugar algum. Acompanha com os olhos o fluxo da cidade, que opera como um organismo vivo, em que cada habitante parece saber exatamente seu papel e o que está a fazer ali. Essa constatação aflige e angustia ainda mais o homem que acabara de sair para a rua, pois tem a sensação de que é o único que anda sem propósito algum. A certeza e a necessidade de prosseguir expressas no semblante de cada pessoa amedrontam o homem. Ele esbarra constantemente nos transeuntes, que o olham e, muitas vezes o xingam, mas ele parece não entender o que dizem. As palavras não aparecem de forma inteligível para o homem, ele percebe que acabou de cometer alguma afronta, mas nem chega a atinar o quê. Ele passa por entre os senhores, os estudantes, os trabalhadores e os ociosos, e se sente como se não fizesse parte daquela organização em que cada indivíduo parece compreender sua função. Até mesmo os ociosos, aqueles cujo trabalho é estar sem nada fazer, aos olhos do homem, parecem entender o verdadeiro significado da existência. Esse excesso de certeza nos olhos de cada um sufoca o homem, que começa a sentir raiva de todos, começa a sentir inveja. Mas todas essas divagações são feitas em sua mente sem nexo algum, as palavras não se formam no seu cérebro, mas ele consegue compreender sua situação apenas com os relances de raciocínio que piscam em seu pensamento. E cada vez mais ele tenta fugir daquilo, do rio de afirmações e certezas que é a sociedade em que ele se encontra. Como não é costume de desatentos olhar para os lados da rua, antes de atravessá-la, o homem é atingido em cheio por um carro em alta velocidade.

Escuridão plena. De certa forma, o rapaz que é objeto da nossa descrição logrou seu objetivo, agora ele está completamente livre da agonia que o atordoava. A realidade em que se encontra é algo totalmente desconhecido e inexplicável para o pensamento humano, que é composto por noções de três dimensões, que não permitem que tal animal veja e sinta além do mundo material. Todas as experiências de saída do mundo, fuga da realidade, não possuem explicações lógicas e não podem ser compreendidas senão pelo prisma místico. Mas o estado de consciência em que se encontra o homem é completamente diferente daquilo que se costuma narrar. É absolutamente diverso das noções de existência num plano fora desse mundo que vemos com as nossas noções de três dimensões. Na forma em que se encontra, o homem não sente frio absolutamente, nem sequer fome. Os desejos que costumavam afligi-lo nem chegam a passar por sua mente; o que ele vê é completamente desconhecido, mas também não possui nenhuma necessidade de ser explicado. Começa-se a pensar que o homem já não se encontra no plano em que todos nós, eu que escrevo e você que lê, estamos. Pois a curiosidade e a necessidade de dar sentido a tudo que é visto e sentido são características inatas ao ser humano; porém o homem já não é mais acometido por todas essas imposições da existência humana. Outra prova de que ele se situa num lugar totalmente estranho e ignorado é que não pode nem sequer descrever sua posição. O homem não consegue atinar se está de cabeça para baixo, se está deitado de bruços, ou menos se está em pé ou sentado. Coisa estranha: ele tem a percepção de existência, mas não pode sentir braços, pernas, mãos ou qualquer outra coisa. Além disso, nesse momento, não poderia afirmar com precisão se esse homem ainda é homem ou é mulher. Sua situação não lhe permite distinguir coisas que para nós, na nossa realidade, são tão banais e triviais. Volto a reforçar que a falta de informação e explicação acerca de sua condição não perturbam o homem de forma alguma. E é isso, pois, o que parece mais intrigante.

O homem sente-se aliviado. Não sente dores, não possui dúvidas, e começa a esquecer as situações do cotidiano do mundo físico em que vivemos. Aos poucos as noções de tempo e espaço começam a ficar cada vez mais abstratas em sua mente. Até que chega o ponto em que o homem já não pode mais dizer o que é o tempo, é impossível distinguir uma fração de segundos e séculos inteiros. Isso é até compreensível – apesar de toda essa experiência não ser nem um pouco lógica para a nossa realidade – porque, se o homem não pode mais sentir o mundo por meio dos seus sentidos e instintos mais primitivos, nem sequer pode achar uma definição para si mesmo, o que significa o tempo numa situação como essa? Quando os tormentos e as angustiam não se fazem presentes, quem pode perceber se o relógio está parado ou funcionando. Além disso, todas as experiências terrenas pelas quais o homem passou vão ficando cada vez mais incompreensíveis e deixam de fazer todo o sentido. Andar, falar, comer, interagir com o mundo não têm significado algum para alguém que se encontra num estado tão estranho para a experiência humana. No ponto em que se encontra o homem, a ideia de se alimentar, que parece tão normal e é, sem nenhum estranhamento, aceita por todos nós, não tem lógica alguma. Num lugar onde nem sequer existe matéria e tudo que se tem é a autoconsciência, o que pode significar ingerir qualquer tipo de substância. Não, isso não tem o menor sentido. As noções de grandezas físicas, como massa, velocidade, espaço não podem ser, de nenhuma forma, assimiladas pelo homem no estado que se encontra. Alguém que tem consciência de si, mas não sente o próprio corpo, não pode aceitar e existência de matéria. Muitos menos compreender as noções de espaço. Tudo parece tão pleno e completo para o homem, que ele tem a certeza de que nada está faltando. A sua consciência é capaz de preencher todas as lacunas de sua existência. E aquilo se tornou o mundo inteiro; ou seja, ele é o mundo inteiro, nada parece estar em falta e não há nem sequer a ideia de que algo, além de si mesmo, existiu. Outras formas de vida a não ser a própria são extremamente inconcebíveis para o homem, pois não há nem espaço para caber qualquer outro ser. Aliás, falar em “ser” nesse ponto é muito arriscado, porque a ideia de ser algum organismo vivo também não faz sentido algum. Estar vivo ou estar morto são expressões que não cabem aqui, pois, como já foi dito, parece, ao homem, que tudo o que já existiu foi si mesmo. Então, a ideia de extinção e desaparecimento é impossível, pois isso determinaria o fim de toda a sua realidade. Como, para o homem, não existem quaisquer outros planos e espaços, as noções de lugar e deslocamento não podem ser compreendidas, de forma que ele não pode “morrer” e passar para outro plano. Pois tudo o que existe está ali e sempre esteve.

Afora isso, tudo é calmaria e escuridão. O homem está submetido à ausência completa de luz. Isso não lhe causa medo, muito menos estranheza; pois não existe nada além da própria consciência. Não há nenhum corpo para refletir luz alguma. E como a ideia de existência solitária é a noção mais natural e básica possível, como o homem pode sentir falta de luz, pessoas, sons, cheiros? Nesse sentido, até mesmo o termo escuridão parece ser incoerente, porque se nunca ouve luz, também não há sua ausência. É o nada propriamente dito. Nem luz, nem escuridão, não há nem sequer o vácuo, não há. Porém, isso é completamente natural e aceitável para o homem.

Desse ponto em diante, por uma questão de terminologia, a palavra “homem” deve ser evitada. Por motivos simples: um homem tem braços, pernas, fala, anda, possui metabolismo, tem anseios, dúvidas, inquietações, procura sentido para sua realidade. O que temos aqui não corresponde a nenhuma dessas características. Não é nem mesmo um ser; não podemos compreender o nosso objeto de descrição como algo que existe da mesma forma como as coisas existem na nossa realidade. É algo completamente abstrato. Chamemo-lo, então, de consciência, apenas. Houve, aqui, um processo complexo de transição entre uma forma de vida que possui sentidos para algo que tem, como única característica, a autoconsciência. As noções do nosso plano, ou seja, do nosso mundo, não podem, de forma alguma, ser compreendidas por essa nova forma de consciência. Aqui, tudo é certeza, apesar de não haver respostas.

Dessa forma a consciência perdeu todo e qualquer tipo de ligação com o nosso mundo. Ela já esteve no nosso plano, na nossa realidade. Mas agora ela passou para um estado em que não há paralelo algum com o nosso mundo. Não é possível estabelecer nenhuma conexão. Não arrisco dizer onde ela pode estar. Pois, não há espaço ou matéria alguma. E isso tudo está muito além do que todos nós, dotados de uma percepção de três dimensões, podemos compreender. Para nós, ou é, ou não é. Ou existe, ou não existe. Pegamos, seguramos nas coisas. Mas como algo pode ser tão dono de si, abrigar em si um mundo inteiro, preencher uma lacuna de perguntas tão atordoantes ao ser humano, eliminar qualquer tipo de inquietação e sofrimento, sem ao menos ocupar algum lugar no espaço, ser alguma coisa, aparecer para nós como uma verdade? Não tenho a pretensão de trazer a resposta, nem mesmo tem aquele homem que acabou se sucumbindo à própria consciência. Tal homem sumiu no meio de tanta complexidade, dentro de uma realidade extremamente abstrata para todos nós. O que se sabe dele é que já não sofre mais com todas as suas angústias. Que, quando saiu atordoado de casa, sem saber o que queria ou o que procurava, quando ele apenas tinha a ideia de que algo o afligia extremamente, todas suas dúvidas terminaram. Recebeu o homem algum tipo de resposta? Por acaso todas aquelas dúvidas foram explicadas? Não, o homem que saiu de casa completamente atordoado não teve sua epifania, não passou por um momento de extrema revelação. Mas sucumbiu àquele estado de consciência que não admite perguntas; na realidade, que não necessita de perguntas. Tudo o que parecia tão complexo sumiu, as inquietações acabaram. Não com a obtenção de respostas, mas sim com o final das perguntas. E, no final das contas, nenhuma daquelas perguntas fazia sentido naquele estado de consciência. Eis o homem e sua morte, foram-se os questionamentos, tudo é paz e nada mais o intranquiliza.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

O presente que é "especialmente para você"

Quando fazemos aniversário, recebemos ligações de pessoas as quais não vemos o ano inteiro (que, por acaso, todo ano dizem a mesmo coisa: nossa, tá maior que o seu pai, já!) e ganhamos presentes e lembrancinhas que nunca, em hipótese alguma, usaremos. Sempre sua mãe dá um jeito de fazer uma festinha, só para chamar os mais "chegados". O problema é que se chamar a Tia Lúcia, a Tia Maria tem que ser chamada também, senão ela fica de mal com a sua mãe. Se chamar um vizinho, tem que chamar os outros também, e eles semprem trazem um primo que não poderiam deixar sozinho em casa. De uma outra para a outra, você nota sua casa cheio de desconhecidos e pessoas que você nunca viu.
As pessoas se sentem meio que obrigadas a nos oferecer alguma coisa, para não ficar com aquele clima de vim-para-comer-um-negociozinho-mas-não-trouxe-nada. Para tal, elas costumam resgatar presentes que ganharam em seus aniversários passados e que não lhe serviram. Fazendo um ciclo infinito com esse objetos. Não raro, você recebe um boné de cinco reais, que deu há uns dois anos e foi passando de mão em mão, mas nunca foi usado. Eu diria que esse tipo frequente de prática ocorre mais entre amigos de escola e trabalho, vizinhos e simpatizantes.
Digo isso porque, de maneira geral, as pessoas de sua família compram um presente "especialmente para você". Sim, esse "especialmente para você" foi com um tom de ironia, porém não posso expressar um olhar sarcástico como o necessário. Pensem em alguém com uma cara de muita ironia, com os olhos meio fechados, como quem está sem óculos, e uma viradnha de cabeça bem lenta. Agora sim: eles compram um presente "especialmente para você". Bem melhor...
O seu tio lhe dá um presente que é a sua cara, sua tia de segundo grau lhe dá um presente que é a sua cara, seu avó lhe dá um desse, sua avó lhe present... não não, esqueça essa parte, porque todas as avós dão pares de meia e cuecas, elas não planejam, esse é o presente padrão para todos os netos. Mas enfim, você entedeu o que eu quis dizer. Se você pensar bem, o único presente que é a sua cara é um espelho. Nossa, eu deveria ter apagado essa, mas deixa aí mesmo...
O que realmente acontece é que as pessoas lhe presenteiam com o que elas acham que combina com elas mesmas. Ou seja, seu tio, santista, lhe dá uma camisa do Santos, mas porque ele gosta. Seu avó lhe dá uma Playboy da Xuxa, mas porque ele gosta; e não tá nem aí se você prefere a revista do Vampeta alguma outra opção.
Depois disso, eles ainda ficam perguntando se você está usando o presente que eles deram. Sua tia sempre fala quando lhe encontra: "tá usando aquela papete que eu te dei, eu gosto dela porque refresca o pé". Isso mesmo, ela gosta. Eu seu tio diz: "tá usando aquele fixador de dentadura de fixação rápida, ele é muito bom mesmo, sua tia que o diga". Ou sua avó diz... Ah, esqueci, a avó só dá cuecas e meias.
E se um dia você convidar uma bixa pro seu aniversário? Ela vai lhe dar um vibrador e depois perguntar se você tá usando? "Nossa, ele é ótimo, com três velocidades..." Ou sei lá, vai dar uma minissaia jeans... "Menina, por que você não tá usando a que eu te dei?". Por quê? Porque eu não sou bixa também, porra!
Se você receber um presentar de aniversário que é especialmente para você, não se aflija. Só guarde e "devolva" para outra pessoa, como brincar de batata quente. Assim é até melhor, porque nós nunca precisamos gastar com presentes de aniversário.